Há dois tipos de música, a música dos sons e a música da luz que não é outra senão o cinema (GANCE apud CHION, 1995:287) [...]. Existem relações fundamentais excepcionalmente estreitadas entre a arte de agrupar sons e a de agrupar notações luminosas. Ambas as técnicas são rigorosamente parecidas. Isso não deveria nos surpreender demasiadamente, já que ambas repousam nos mesmos princípios teóricos e sobre as mesmas reações fisiológicas de nossos órgãos na presença de fenômenos de movimento. O nervo óptico e o nervo auditivo, apesar de tudo, possuem as mesmas faculdades de vibração (ALCAN apud CHION, 1995:288).
Em seu livro La musique au cinéma (1995), o pesquisador e músico francês Michel Chion aponta que existem fenômenos sensitivos que são transsensoriais, ou seja, fenômenos em que o ouvido e a visão são suscetíveis de perceber, quando esses são dimensões comuns entre eles, como é o caso do ritmo, por exemplo. Porém, para ele isso não implica que todos os fenômenos musicais e sonoros, de um lado, e todos os fenômenos visuais, de outro, se reduzam a esse tronco comum. Para Chion, poderia ser dito que a dança é como uma melodia para a visão, cujo corpo é o instrumento, e o momento em que o bailarino faz uma pausa equivaleria a uma cadência. Porém, tais analogias, para ele, não provam mais do que o fato de que há uma circulação de referências entre o que chamamos de música, dança e cinema (CHION, 1995:288).
Na obra L'audio-vision: son et image au cinéma (2005), texto referência de Michel Chion para compreendermos a relação “áudio-visual”, o autor também nos alerta sobre as armadilhas de adotarmos conceitos musicais ao tratarmos de questões audiovisuais, como é o caso do uso da palavra contraponto. O termo cunhado na música, quando adotado no audiovisual, adquire uma interpretação diferente da puramente musical, significando a não convergência do som e da imagem no cinema. Este é o caso, por exemplo, das transmissões esportivas, em que o que se comenta não está diretamente associado à imagem a não ser pelo contexto geral. Neste sentido somos levados a uma pré-leitura da relação som-imagem quando deveríamos, de acordo com o que estamos assistindo, ouvir um som “X” e ouvimos um som “Y”, que contradiz essa imagem. Os pontos harmônicos e as cadências da música são também refletidos no audiovisual através de pontos de sincronização entre som e imagem, assumindo-se aqui a necessidade de certa cautela no emprego dessa possível relação. O contraponto “áudio-visual”, por exemplo, só é percebido quando ambos se opõem em um ponto preciso de significação (CHION, 2008:36-37). Uma ideia concebida para a música e relativa a seus valores puros (como a altura ou a duração) quando direcionada para uma esfera de imagens concretas produz efeitos diferentes. Isso ocorre porque o ouvido não tem as mesmas propriedades que a visão e o jogo de relações matemáticas da música (como os intervalos, por exemplo) não é percebido de forma igual pelos ouvidos e pelos olhos. O olho não se caracteriza pela sua imposição absoluta sobre os outros sentidos, como é o caso do ritmo ou da altura na música, sobre os quais a visão não se impõe.
Segundo Chion, o filme está obrigado, desde o momento em que se recorre à montagem, a romper com o ritmo da imagem e, desse modo, romper com sua própria pulsação. A música torna-se então elemento modesto e indispensável, que assegura a continuidade desta pulsação. Desde o cinema mudo a música levava a pulsação sobre a qual eram inscritos os ritmos de projeção das imagens, ocorrendo uma primeira simultaneidade.
O paradoxo é que quando o cinema pôde incorporar um som sincronizado e tal som passou a ser parte indissolúvel do filme (indissolubilidade relativa, tal como mostra a prática da dublagem), então o filme começou a ser percebido como uma totalidade discordante, separada, dividida, ainda que o som levasse os meios de uma autêntica polifonia ou, para ser mais exato, de uma polirritmia (CHION, 1995:291).
Perguntado se encontraríamos equivalentes na imagem à música, Chion afirma que de certo modo isso já ocorre ao observarmos formas geométricas e abstrairmos suas formas originais para atribuirmos a ela outro significado, como no caso das placas de trânsito, por exemplo. Contudo, em diversas situações essa equivalência não acontece, como por exemplo nos casos em que o som, ao sofrer uma redução de sua duração, transforma-se em um outro som. No caso da imagem, ao sofrer uma redução de tamanho, esta mantém sua identidade, divergindo assim do som. Assim sendo, Michel Chion nos afirma categoricamente: “a observação sonora e a observação visual possuem critérios fundamentalmente diferentes” (CHION, 2012:60).
REFERÊNCIAS:
CHION, Michel.. La musique au cinéma. Les chemins de la musique. Paris: Fayard, 1995
______________. L'audio-vision: son et image au cinéma. Nathan- Université, série "Cinéma et Image", Paris, 1991, 2a ed. por Armand-Colin, 2005.
_______________A Audiovisão, Som e Imagem no Cinema. Trad. Pedro Eloi Duarte. Editora Texto & Grafia, Lisboa, 2008.
_______________. Michel Chion, Théoricien, Musicien et Cinéaste. Montreal: Universidade de Montreal. Transcrição de Anne-Marie Leclerc do laboratório “La création sonore : cinéma, arts médiatiques, arts du son”, jan. 2012. Disponível em: <!http://www.creationsonore.ca/wp- content/uploads/2014/10/ateliers_michel-chion.pdf >. Acesso em: 12 mar. 2017.
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